Os efeitos de longo prazo de uma pandemia sobre o cérebro

10/02/2022

        A reportagem é da BBC Brasil…
ilustração
Sobreviventes de surtos de vírus podem vir a sofrer problemas cerebrais posteriormenteSobreviver a uma pandemia nem sempre é o fim da história. Alguns vírus podem ter efeitos para a saúde que se estendem por décadas, acabando por gerar uma série de doenças devastadoras.

Na década de 1960, epidemiologistas estudavam as expectativas de longo prazo dos sobreviventes da gripe espanhola de 1918, quando começaram a notar uma tendência incomum.

Os nascidos entre 1888 e 1924 – ou seja, pessoas que eram crianças ou jovens adultos na época da pandemia – pareciam apresentar propensão duas ou três vezes maior ao desenvolvimento de mal de Parkinson em algum momento das suas vidas que os nascidos em outras épocas.

Foi uma descoberta surpreendente. As potenciais consequências neurológicas de infecções gripais vêm sendo documentadas por médicos há séculos – existem relatos médicos a este respeito que datam até 1385 – mas a imensa escala da gripe espanhola, que infectou cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo, indicava que os cientistas poderiam relacionar o aumento do risco da doença à pandemia.

Nos últimos anos, foi também identificado alto risco de Parkinson entre os sobreviventes de surtos de HIV, vírus do Nilo ocidental, encefalite japonesa, vírus de Coxsackie, vírus da encefalomielite equina ocidental e do vírus Epstein-Barr.

Os neurologistas que estão tentando entender por que isso acontece acreditam que todos esses vírus sejam capazes de entrar no cérebro e, em alguns casos, danificar as frágeis estruturas que controlam a coordenação dos movimentos, conhecidas como gânglios basais, iniciando um processo de degeneração que pode levar ao Parkinson.

Agora os cientistas estão interessados em monitorar se a atual pandemia também ocasionará aumento da taxa de casos de Parkinson nas próximas décadas.

“Nós não sabemos, mas precisamos considerar que isso pode vir a ocorrer”, afirma Patrik Brundin, pesquisador de Parkinson do Instituto Van Andel, em Grand Rapids, Michigan, nos Estados Unidos.

“Existem diversos estudos que indicam que as pessoas que se recuperaram da covid-19 muitas vezes apresentam deficiências de longo prazo no sistema nervoso central, que incluem a perda dos sentidos do olfato e do paladar, confusão mental, depressão e ansiedade. Os números são preocupantes.”

Embora o Sars-CoV-2 possa invadir o tecido cerebral, os cientistas continuam estudando se ele irá contribuir com as doenças neurodegenerativas.

Os coronavírus são geralmente conhecidos como “vírus que atacam e fogem”, pois eles tendem a causar doenças razoavelmente curtas, mesmo quando mortais em alguns casos. Já os vírus de DNA, como o Epstein-Barr, podem residir permanentemente no corpo e são mais associados a doenças de longo prazo.

Mas existem algumas indicações do passado de que poderá haver mais questões ligadas aos coronavírus que talvez suspeitemos. Nos anos 1990, o neurologista canadense Stanley Fahn publicou um estudo que identificou anticorpos para os coronavírus que causam o resfriado comum no líquido cefalorraquidiano (também conhecido como fluido cerebrospinal) de pacientes com Parkinson.

Pesquisas em andamento

Ao longo do ano passado, cientistas como Patrik Brundin preocuparam-se com o surgimento de um pequeno grupo de estudos de caso descrevendo pacientes que desenvolveram o que os médicos chamam de parkinsonismo agudo – anormalidades como tremores, rigidez muscular e dificuldades de fala – após infecções por covid-19.

Outras pesquisas concluíram que alguns pacientes de covid-19 apresentam distúrbios em um dos sistemas mais críticos do corpo humano, conhecido como a rota da quinurenina.

Ela vai do cérebro até o intestino e é utilizada para produzir diversos aminoácidos fundamentais, necessários para a saúde do cérebro.

Mas o seu mau funcionamento pode gerar acúmulo de toxinas que, segundo se acredita, têm participação no mal de Parkinson.

Mas outros neurologistas advertem que ainda é cedo demais para traçar qualquer ligação entre a covid-19 e o mal de Parkinson.

atendimento durante surto de gripe de 1918
A pandemia de gripe de 1918 ainda prejudicava a saúde da população mundial mais de 40 anos depois

Alfonso Fasano, professor de neurologia da Universidade de Toronto, no Canadá, salienta que os casos de parkinsonismo agudo que vêm sendo descritos poderão envolver simplesmente pacientes que já estavam nos estágios iniciais da doença e a tensão de infectar-se com covid-19 simplesmente acelerou ou “desmascarou” os sintomas.

“Até o momento, estamos falando de cerca de uma dúzia de casos, quase todos com falta de informações detalhadas”, afirma ele. “É verdade que o que chamamos de parkinsonismo pós-encefalítico pode ocorrer após infecções virais, mas nem todas as pandemias são iguais. A gripe espanhola foi causada por um vírus totalmente diferente.”

Mas muitos acreditam que existe a necessidade de monitoramento contínuo de todos os sintomas similares ao mal de Parkinson que surjam em pessoas que tenham sido infectadas anteriormente com covid-19, caso os próximos anos revelem um aumento gradual dos casos.

E Parkinson não é a única preocupação. Especialistas de todo o mundo estão tentando descobrir se a covid-19 induzirá uma onda oculta de outras doenças relativas aos transtornos causados pelo Sars-CoV-2 ao sistema imunológico humano. Essa onda, se acontecer, trará sérias consequências para a saúde pública, mas poderá também nos ajudar a encontrar novas formas de detectar essas doenças no estágio inicial e até consolidar o caminho para novos tratamentos e vacinas.

O dilema da diabete

Na primavera de 2020, Francesco Rubino, cirurgião metabólico e bariátrico do King’s College, em Londres, começou a notar um número crescente de relatos de pacientes de covid-19 chegando ao hospital com níveis estranhamente altos de açúcar no sangue, muito embora eles não tivessem histórico de diabete anterior.

Paralelamente, os médicos também estavam observando que pacientes que já tinham diabete pareciam particularmente vulneráveis à doença.

Rubino interessou-se em observar se essa relação estranha seria um sinal de que a covid-19 causava impactos diretos sobre o pâncreas, um órgão complexo que contém células beta para a produção de insulina, o hormônio que ajuda o corpo a metabolizar as moléculas de açúcar do sangue.

Ele formou um banco de dados global chamado Registro CovidDiab para acompanhar esses pacientes e descobrir o que acontecia com eles.

Até o momento, foram rastreados 700 casos ao longo do ano passado e espera-se que esses dados possam ajudar a resolver um problema antigo que vem intrigando os cientistas há muitos anos: se os vírus podem causar diretamente a diabete tipo 1.

homem descendo escada
Diversos vírus foram relacionados à síndrome de Guillain-Barré, uma condição neurológica rara. Um deles é o Zika, que pode ter gerado um pico de casos em 2015

Foram feitas associações no passado entre a diabete tipo 1 – uma condição crônica que tipicamente se desenvolve na infância ou na adolescência, quando o pâncreas do paciente se torna permanentemente incapaz de produzir insulina – e diversos vírus, como Coxsackie B, rubéola, citomegalovírus e caxumba.

Os cientistas suspeitam que esses vírus possam ser capazes de infeccionar o pâncreas, seja escapando dos pulmões ou do intestino e dali para os vasos sanguíneos.

Em 2015, pesquisadores do Centro de Pesquisa de Diabete de Oslo, na Noruega, descobriram uma infecção viral baixa e persistente em células beta extraídas de biópsias de tecido do pâncreas de pacientes recém-diagnosticados com diabete tipo 1, mas os casos foram muito poucos para estabelecer provas concretas.

“Houve outras epidemias que foram associadas a novos casos de diabete”, afirma Rubino. “Mas essa ligação foi baseada em um poucos relatos médicos. Por isso, analisando algumas centenas de casos, esperamos poder encontrar uma associação com mais informações.”

Desde o início da pandemia de covid-19, tem havido repetidas indicações de um pico anormal de casos de diabete tipo 1.

No verão de 2020 no hemisfério norte, hospitais do noroeste de Londres já informavam o dobro do número normal de casos e um estudo publicado na revista Nature no início deste ano concluiu que sobreviventes da covid-19 nos Estados Unidos apresentavam propensão cerca de 39% maior de ter um novo diagnóstico de diabete em até seis meses após a infecção, em comparação com indivíduos não infectados.

Os cientistas agora estão tentando provar que a covid-19 está, de fato, contribuindo diretamente com esse aumento do número de casos. Shuibing Chen, biólogo de células-tronco da Weill Cornell Medicine, nos Estados Unidos, acredita que existem evidências que sugerem que o vírus pode atacar as células beta e também gerar inflamações no pâncreas e em outros órgãos, causando danos a diversos sistemas que controlam os níveis de açúcar no sangue.

“Nós detectamos antígenos virais em células beta do pâncreas humano em amostras de autópsias de pacientes de covid-19, o que sustenta a participação da infecção direta”, afirma Chen.

Mas nem todos estão tão convencidos. Alguns indicam que pacientes que aparentemente desenvolvem diabete como resultado da covid-19 poderiam, na verdade, estar sofrendo lesões no pâncreas devido ao tratamento intensivo com esteroides no hospital – ou eles poderiam já estar nos estágios iniciais do desenvolvimento da diabete e, novamente, a covid-19 pode simplesmente ter

desmascarado a doença.

pesquisadora
Acredita-se que certos vírus possam acionar uma reação imunológica que posteriormente aumenta o risco de uma pessoa desenvolver mal de Parkinson.

“Tem havido relatos de que o Sars-CoV-2 pode não apenas infectar diretamente as células beta, mas também matá-las”, afirma Matthias von Herrath, professor de autoimunidade do Instituto de Imunologia de La Jolla, nos Estados Unidos. “Mas um outro estudo refuta a ideia de que ele normalmente afeta as células beta, de forma que ainda não se pode decidir qual a sua especificidade e qual o risco de causar perda funcional das células beta.”

Ao longo dos próximos meses, a esperança é que o banco de dados CovidDiab traga algumas respostas mais concretas. “Não esperamos poder responder a todas as questões, mas esperamos aprender muito com esses 700 casos que provavelmente representam a maior coorte de diabete relacionada ao vírus”, afirma Rubino. “Qual a probabilidade de a covid-19 estar por trás desses casos? Existe um mecanismo direto? E, se existir, qual é?”

A diabete tipo 1 não é a única doença autoimune relacionada à covid-19. Ao longo do último ano, diversos estudos associaram a infecção pelo Sars-CoV-2 a outros distúrbios autoimunes como a síndrome de Guillain-Barré, uma condição rara e séria na qual o sistema imunológico ataca os nervos, causando insensibilidade, dificuldade de equilíbrio e coordenação, fraqueza, dores e, às vezes, paralisia.

Os cientistas acreditam que pacientes hospitalizados com covid-19 sejam particularmente propensos a desenvolver essas complicações, pois é mais provável que eles tenham autoanticorpos no sangue – uma forma de proteína produzida pelo sistema imunológico que é dirigida aos próprios tecidos do corpo, gerando complicações.

Um consórcio de cientistas da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, está agora acompanhando uma coorte de indivíduos que sofreram doença severa causada pela covid-19, para verificar quantos deles desenvolvem problemas autoimunes em prazo mais longo e o que torna certas pessoas particularmente vulneráveis.

“Não podemos prever o futuro”, afirma Russell Dale, que pesquisa doenças autoimunes na Universidade de Sydney, na Austrália. “Mas existem diversos precedentes de doenças infecciosas que geram problemas inflamatórios e autoimunes.”

Diagnósticos e vacinas

A perspectiva de que a covid-19 possa gerar um surto silencioso de doenças crônicas é algo sério, mas, se puderem ser definidas relações conclusivas entre as infecções virais e diferentes condições, será possível transformar a maneira como procuramos e tratamos muitas dessas doenças no futuro.

No caso de diabete tipo 1, os cientistas estão particularmente interessados em estudar exatamente o que acontece após a infecção das células beta com Sars-CoV-2, para observar se existe uma forma de evitar sua destruição e, com isso, suspender o início da doença antes que ela se desenvolva completamente. “Compreender a ligação entre a infecção viral e a diabete tipo 1 poderá facilitar a prevenção e o diagnóstico precoce”, afirma Chen.

vírus
O vírus Coxsackie B foi relacionado ao desenvolvimento de diabete tipo 1. Agora, os cientistas estão pesquisando se a covid-19 também poderá tornar as pessoas mais suscetíveis à doença

Knut Dahl-Jørgensen, consultor de endocrinologia pediátrica e diabete do Centro de Pesquisa de Diabete de Oslo, afirmou à BBC que seus colegas estão iniciando um teste clínico para observar se o tratamento antiviral pode ajudar a proteger o pâncreas em crianças recém-diagnosticadas com diabete tipo 1.

Chen também lidera um projeto que envolve a seleção, entre uma grande biblioteca de diferentes compostos químicos, de algum composto que possa tornar as células beta mais resistentes a ataques virais.

Até o momento, eles já identificaram um composto específico, chamado trans-ISRIB, que aparentemente é capaz de proteger as capacidades de produção de insulina de células beta quando infectadas com Sars-CoV-2 em uma placa de Petri. Embora ele ainda não seja aprovado pelos órgãos reguladores, nem testado em seres humanos – e, portanto, ainda não pode ser utilizado em pacientes com covid-19 com níveis anormais de açúcar no sangue – Chen espera que ele possa ser administrado no futuro como medicamento preventivo para indivíduos vulneráveis após a infecção.

A forte ligação entre a covid-19 e diferentes condições autoimunes poderá também incentivar o desenvolvimento de vacinas protetoras contra outros vírus que foram associados anteriormente a essas doenças. Pesquisadores do Instituto Karolinska, na Suécia, e das Universidades de Tampere e de Jyväskylä, na Finlândia, desenvolveram uma possível vacina que protege contra todas as seis linhagens de Coxsackie B e, segundo foi demonstrado, evita que camundongos desenvolvam diabete tipo 1 induzida por vírus.

Gunnar Houen, imunologista do Instituto Estatal do Soro de Copenhague, na Dinamarca, acredita que isso também levará a aumento dos investimentos em vacinas contra Epstein-Barr, um vírus que foi associado ao desenvolvimento de artrite reumatoide e esclerose múltipla, além de certos tipos de câncer.

“As vacinas muito provavelmente são eficazes contra Epstein-Barr se forem administradas suficientemente cedo, pois a maioria das pessoas é infectada por esse vírus durante o primeiro ou o segundo ano de vida”, afirma Houen. “Haverá um mercado para isso, pois as doenças associadas causam danos iguais ou maiores que a covid-19.”

Ao mesmo tempo, os cientistas esperam que, nos próximos meses e anos, surgirão mais informações sobre a possibilidade de a covid-19 desencadear cada uma dessas doenças.

“Essas questões não serão todas respondidas amanhã, nem nos próximos dois meses, mas, ao longo do próximo ano, esperamos poder analisar esses dados e começar a responder algumas perguntas, observar alguns padrões e talvez tenhamos algumas respostas”, segundo afirma Francesco Rubino.

Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.

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