20/09/2021
Para Pochmann, a privatização torna difícil acreditar que o Rio Grande possa ter um futuro melhor.
Gaúcho de Venâncio Aires, o economista Márcio Pochmann, 59 anos, diz que o Brasil sofre hoje do que chama “curtoprazismo”, praticado pela União e por governos como o do Rio Grande do Sul. “São governos que conseguem olhar, no máximo, o hoje ou as eleições do ano que vem”, diagnostica. Não há projeto nacional nem visão de futuro. Repara que o país liquida suas empresas públicas sob o argumento de que o setor privado fará melhor seu serviço, alavancando a economia nacional.
Porém, cinco anos após o mandato Temer mover seu rolo compressor contra as estatais, política seguida fielmente pelo atual governo, isto não aconteceu. O Brasil parou e encolheu. Está mais empobrecido e com quase 15 milhões de desempregados. E na contramão do planeta. “As estatais, em 2005, respondiam por 5% das 500 maiores empresas do mundo. Em 2020, 47% das 500 maiores empresas do mundo são estatais”, ilustra.
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Na história do Brasil – acentua – foi sempre o Estado que impulsionou o crescimento econômico. Aqui, nesta versão substancialmente ampliada de sua entrevista na edição impressão do Brasil de Fato RS, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) radiografa o panorama brasileiro. Começa nos anos 1950 – quando o Estado estatizou as multinacionais que fracassaram em oferecer energia elétrica e telefonia ao país – chegando até ao caótico governo atual que fechou 2020 registrando atividade econômica 7% inferior àquela de seis anos atrás.
Brasil de Fato RS – Privatizar continua sendo uma palavra mágica para o governo Bolsonaro. Mas o que os trabalhadores ganham com a venda das empresas públicas?
Márcio Pochmann – Na década de 1950, durante o governo Juscelino Kubitschek, houve um debate a respeito do que poderia ser privatizado e mesmo estatizado no Brasil. De um lado o Brasil tinha a única empresa montadora de veículos, que era a Fábrica Nacional de Motores (FNM), estatal construída ainda na década de 1940. E chegou a conclusão de que a produção de automóveis deveria ser melhor feita pelo setor privado, especialmente multinacional. Então, a Fábrica Nacional de Motores foi vendida.
De outro lado, nós tínhamos o serviço privado voltado para o atendimento de energia elétrica e o sistema de telefonia. Esses dois setores foram estatizados porque o setor privado não conseguia oferecer um sistema adequado. O Estado interveio e construiu um sistema nacional de energia e telefonia.
Cito esse debate dos anos 1950 porque hoje, na verdade, não há um debate sobre a privatização. Ela está sendo feita inclusive de modo diferente do que foi feito nos anos 90 nos governos Collor e FHC. (Na época), se justificava a privatização como sendo a melhor oportunidade para um investimento em geração pelo setor privado que seria mais eficiente que o público.
Ocorre que, desde a crise de 2008, ficou claro que o setor privado não tem toda esta eficiência. O que temos visto de 2008 para cá, é um crescimento da presença do Estado com a reestatização de vários serviços públicos em diferentes países. Um crescimento das estatais com a expansão dos fundos soberanos que têm permitido a alguns países comprarem empresas privadas e também empresas que estão sendo privatizadas em outros. Um exemplo é a refinaria Landulpho Alves, da Petrobras, na Bahia, que foi vendida. Mas quem comprou foi um fundo soberano dos Emirados Árabes. Ou seja, é um fundo estatal.
As estatais em 2005 respondiam por 5% das 500 maiores empresas do mundo. Em 2020, 47% das 500 maiores empresas do mundo são estatais. Há um revigoramento do Estado em diferentes economias mas infelizmente o Brasil não tem projeto nem visão de futuro. O presidente Bolsonaro, logo que assumiu, disse num banquete nos Estados Unidos que o governo dele era um governo de destruição. Bom, nisso ele está sendo coerente.
O governo Bolsonaro – e muitos governos estaduais, como o do Rio Grande do Sul – continua querendo passar o rodo no patrimônio público. Faz sentido essa preocupação estar sempre à frente de problemas mais urgentes como o enfrentamento da pandemia e do desemprego?
Estamos vivendo governos, o caso nacional e estadual, governos de “curtoprazismo”, que conseguem olhar no máximo o hoje ou as eleições do ano que vem. Não temos projeto nacional. Os países que melhor desempenho têm no mundo são justamente os que trabalham com planejamento, que olham os próximos cinco anos e sobretudo países que tem um Estado atuante.
É um equívoco a visão mecânica daqueles que acreditam que menos Estado faz com que o setor privado seja maior e vice-versa. No capitalismo há uma espécie de hibridismo entre o Estado e o setor privado. Estado fraco também indica setor privado fraco, Estado forte pode indicar empresas privadas fortes. O que vemos no Brasil é isso. A redução do Estado, a contenção dos recursos públicos, vem sendo acompanhada por uma redução também do setor privado.
O Brasil em 2020 passou a ter uma atividade econômica 7% menor do que havia sido em 2014. Não consegue voltar a 2014 quando comparado com atividade econômica, nível de emprego, lucratividade. Nesse sentido, não há o que esperar de positivo com a privatização das empresas públicas, nem do ponto de vista do emprego, muito menos de renda. Elas (as privatizações) estão sendo feitas com o objetivo de lucro, de curto prazo, sem garantias de investimento, sem garantias de tarifas que possam viabilizar um cenário melhor para os brasileiros.
No começo do ano, o presidente da República disse que o Brasil “está quebrado”, que ele, Bolsonaro, “não consegue fazer nada” e que uma parte considerável dos trabalhadores brasileiros “não está preparada para fazer nada”. Sobrou, portanto, para os trabalhadores. A culpa do caos é dos brasileiros?
Tem sido recorrente entre os governos do receituário neoliberal fazer com que as vítimas do desemprego sejam responsabilizadas por sua própria situação. Nos anos 1990, a explicação para o altíssimo desemprego era dada pela baixa qualificação dos trabalhadores. Se tivessem maior formação, escolaridade, não teriam desemprego. Ou seja, a culpa pelo desemprego não era da economia que não crescia e não gerava emprego mas do próprio trabalhador.
Nos anos 2000, a economia voltou a crescer, e o Brasil entrou numa fase de quase pleno emprego, demonstrando o quanto as teses neoliberais estavam equivocadas. Infelizmente, a partir de 2016 novamente o receituário voltou a ter dominância no Brasil, mas agora não se diz que o problema está na educação, até porque o nível de escolaridade brasileiro cresceu. O que se diz é que as empresas querem contratar trabalhadores, mas não os contratam porque eles custam muito porque a legislação é rígida. Portanto, ao reduzir os custos do trabalho, ao facilitar a contratação e a demissão, as empresas passariam a contratar mais, reduzindo o desemprego.
Ora, esse argumento foi adotado em profusão em 2017, quando se fez a reforma trabalhista no governo Temer. Quatro anos depois, o desemprego não se alterou, não se geraram os supostos trabalhos, porque o que determina um emprego no capitalismo não é o custo de contratação do trabalhador, mas se há ou não demanda para a produção de que a empresa é responsável.
Uma empresa de construção civil não vai contratar mais trabalhadores para obras da construção civil só porque o salário caiu. O custo do trabalho é menor (mas) ela só vai contratar se tiver demanda, investimento para as famílias que queiram ter casa própria, se tiver investimento em obras públicas, pontes, rodovias. O que determina o emprego é o crescimento econômico e não o custo da mão de obra.
No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite (PSDB) já vendeu a estatal de energia, a CEEE, quer vender a Corsan, a companhia estadual de água e saneamento, a Procergs, a empresa de processamento de dados, e o Banrisul, o banco público estadual. É curioso como a agenda da privatização a qualquer custo continua na moda no Brasil. Mas no mundo é um pouco diferente, não?
O Rio Grande do Sul, infelizmente, pelo tipo de governo que vem tendo, avança em um processo de decadência inimaginável, quando se compara a pujança, a prosperidade com que o estado se apresentava para o Brasil, com forte investimento em educação, infraestrutura, tecnologia. Hoje, o que estamos vendo com esse processo de privatização, a ausência de comando de parte do estado em termos de um projeto de médio e longo prazo, torna cada vez mais difícil acreditar que o Rio Grande do Sul possa ter um futuro melhor.
Bancos públicos, como o Banco do Brasil, a Caixa e o Banrisul, aqui no estado, estão presentes em municípios onde nenhum banco privado está. O mesmo acontece com os Correios, também alvo da privatização, com o fornecimento público de água, saneamento, energia etc. Em todos esses casos, a lógica não é a do lucro mas a da prestação de um serviço público à população. Como seria o Brasil, com mais de cinco mil municípios, com tais serviços entregues a particulares, cuja lógica é fundamentalmente apenas a do lucro?
A privatização não ocorre apenas e tão somente quando uma empresa pública é transferida para o setor privado. Temos no Brasil empresas públicas que, apesar de não terem sido privatizadas, têm gestão privada. No caso da Caixa, do Banco do Brasil, entre outros bancos públicos, justifica-se a sua existência quando operam diferentemente da lógica privada.
A lógica privada faz com que, por exemplo, um banco mantenha agências em um determinado município apenas e tão somente se naquele município a receita adquirida por seus serviços é superior à despesa. Se as despesas são equilibradas às receitas ou até maiores, o banco privado fecha a agência porque não tem razão de existir. É a diferença de um banco público que deve manter a agência e seus serviços, sobretudo para os setores que mais precisam. Neste sentido, há a garantia de agências em cidades e bairros cuja receita até pode ser inferior à despesa. Esse é o papel do banco público, porque o privado não vai fazer.
Na medida em que se privatizam os serviços, ou se passa a operar com a lógica privada, justifica-se a direção da Caixa fechar inúmeras agências, sobretudo em lugares pobres, operando como se fosse um banco privado. E aí oferece resultados grandiosos, de alta lucratividade, justamente gerada pela exclusão dos mais pobres.
Os governos – e a mídia empresarial – festejam os números do agronegócio. Mas é este o destino do Brasil na economia mundial? Ser um mero produtor/exportador de soja, como foi no Brasil-Colônia de açúcar ou, mais tarde, de café?
Produzir para exportar a partir de matérias-primas, representa a lógica pela qual o Brasil foi fundado pelos portugueses. É uma situação colonial. Produzir para exportar e não para alimentar o povo e gerar empregos. É isso que justifica os estudos importantíssimos de Josué de Castro, que demonstrou o paradoxo do Brasil ser um dos principais produtores de matérias-primas e de alimentos do mundo até a década de 30, 40, e ao mesmo tempo, acumular uma quantidade significativa da população em situação de fome. Isso resulta do modelo exportador. Um país que joga fora a possibilidade da sua emancipação, de decidir os passos de acordo com a sua própria vontade, porque é um país que depende das exportações. É um país que depende das decisões de quem compra esses produtos.
Sem falar que o agronegócio brasileiro, embora importante do ponto de vista das exportações que gera, na verdade vem se expandindo à custa inclusive de insegurança alimentar. Vem se expandindo cada vez mais dependente do exterior porque não produz tecnologia, depende da compra de sementes, depende da importação de equipamentos. Enfim, a sua forma de funcionamento permite resultados no curto prazo, mas que, de certa maneira, vai comprometendo o próprio meio ambiente com devastações e até mesmo a sua capacidade de concorrer no médio e longo prazo, tendo em vista a expansão de áreas de produção agrícola compatíveis com o Brasil na África e até mesmo na Rússia.
Isso coloca um grande desafio à questão nacional. Mais de 213 milhões de habitantes não têm condições de se manter como país dependendo apenas e tão somente da atividade agrícola, especialmente o agronegócio, que emprega cada vez menos pessoas.
Nos últimos seis anos, o Brasil encolheu. Ficou menor na economia e maior no desemprego. Qual a culpa que as estatais têm disso?
A regressão a qual o Brasil está vivendo está diretamente relacionada ao que aconteceu com o Estado. Foi o diagnóstico de que os problemas brasileiros são responsabilidade do Estado, que o Estado gasta demais, que o Estado é corrupto, que o Estado é ineficiente, e portanto a saída seria reduzir o Estado. Para isso foram tomadas uma série de medidas, entre elas a aprovação da emenda 95 por exemplo, que corta praticamente ou impossibilita a expansão dos recursos públicos além da inflação. Estamos falando aqui de recursos públicos para atividades de custeio e investimento.
Nada toca no pagamento de juros da dívida, por exemplo. Esse aprisionamento do gasto público deverá ser mantido por cerca de 20 anos. Não existe nenhum país do mundo que fez uma opção dessa natureza como o Brasil fez. Então, o aprisionamento de recursos públicos inibe as possibilidades de expansão econômica, dificulta a renda dos brasileiros.
Há a crença de que, uma vez encolhendo o Estado, o setor privado se expande natural e espontaneamente. É um equívoco. A realidade vem demonstrando que, sem a retomada do papel do Estado, dificilmente o Brasil conseguirá voltar a ser o que era em 2014 quando atingiu o seu maior nível de atividade e de emprego.
O Brasil pode abrir mão de suas empresas públicas sem perder sua soberania?
O papel da empresa pública é fazer aquilo que o setor privado não faz. E a experiência das empresas estatais no Brasil se deu basicamente dentro dessa trajetória: foram sendo criadas para ocupar o espaço que o setor privado se mostrou incapaz (de ocupar). Quando se analisa a situação do Brasil hoje, e dialoga com as questões de médio e longo prazo, de futuro, a gente percebe que o setor brasileiro é relativamente muito pequeno para as ações de grande porte.
Por exemplo, se o Brasil quiser ser um país soberano, ele precisa ter o seu próprio sistema de GPS que hoje é americano, diferentemente de países como a Índia, a Rússia, a União Europeia, que criam seus próprios sistemas de inteligência. Portanto, o tema da ciência e tecnologia é fundamental. O Brasil conseguiu avançar na tecnologia de exploração em águas profundas porque a Petrobras esteve conectada com muitas empresas, mas também universidades e instituições de pesquisas.
É difícil imaginar que um país de dimensão continental como é o caso brasileiro, um país subdesenvolvido, poderia simplesmente deslocar a centralidade do Estado apenas e tão somente para as empresas privadas. Se fosse verdade, esses últimos cinco anos deveriam apresentar resultados diferentes dos que temos hoje. Vivemos um quadro de asfixia estatal, o que resulta num setor privado empobrecido, incapaz de espontaneamente puxar a expansão econômica.
Você já disse que, no Brasil, quando se enfraquece o Estado, também enfraquece a iniciativa privada. Poderia detalhar esta ideia?
O Estado tem um papel muito importante na antecipação de atividades econômicas. Quando tem um projeto de investimento, em geral ele demanda a atividade privada.
Vamos dar um exemplo concreto: uma universidade pública aberta numa determinada cidade atrai investimentos privados. De que forma? A construção do prédio, a contratação de professores, os alunos envolvidos na sala de aula. Isto gera uma concentração de pessoas que demandam serviços de alimentação, transporte, moradia. E geralmente, para poder atender essa demanda, é o setor privado que vai fazer o investimento imobiliário, em ampliação de restaurantes e de outros serviços.
Então, o que temos visto no Brasil ao longo do tempo é uma simbiose entre o investimento público e a expansão do setor privado.
Apesar da gravidade do quadro, a maioria das pessoas, envolvidas com as lutas do dia a dia pela sobrevivência, ainda não percebe o risco que corre com a corrida das privatizações promovida no país. O que é possível dizer para que tomem uma posição?
Infelizmente um povo entristecido, sem perspectiva de futuro, não adere a lutas mais gerais pois está submetido à sobrevivência, ao curtíssimo prazo. Por isso o debate é muito importante. Ele permite a conscientização.
A população, o indivíduo, é levado a planejar o seu dia no máximo por um ano. Agora, os dirigentes de sindicatos e partidos, tem um dever de planejar o médio e longo prazo, um, dois anos. É nesse sentido que o debate ajuda aqueles que estão submetidos ao curtíssimo prazo da sobrevivência a perceber o papel nas decisões de futuro do país.
Portanto, essa discussão acerca da privatização, do mal que está sendo construído no Brasil, merece ter um espaço apropriado. A mídia comercial que temos não dá espaço para isso porque também ela é uma das interessadas na própria privatização.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul