Dia de Reis: corrida por ouro na África ameaça produção de incenso e mirra

06/01/2023

Neste Dia de Reis, uma reportagem da BBC News, em Daallo Mountain, relembra a passagem bíblica sobre os três Reis Magos e conta uma história que fala sobre ganância, exploração e destruição.

Imagem que mostra a cena bíblica de três homens sábios em camelos

Os Reis Magos levaram três presentes preciosos para marcar o nascimento de Jesus, segundo a Bíblia. Agora, uma corrida do ouro moderna na Somalilândia coloca em risco o secular comércio de mirra (planta medicinal) e de olíbano (resina usada na fabricação de incenso).

“O ouro, o incenso e a mirra levados pelos três homens sábios para o menino Jesus com certeza saíram daqui”, afirma o ancião sentado na areia, à sombra de uma árvore.

Encontrei Aden Hassan Salah na montanha Daallo, na cordilheira de Golis, que se estende pela autodeclarada república da Somalilândia e pelo Estado da Puntlândia, na Somália. Os dois territórios reivindicam a região.

“As rotas das caravanas de camelos que passaram séculos transportando esses produtos daqui para o Oriente Médio podem ser vistas do espaço”, diz Salah. A Bíblia conta como esses animais carregaram os presentes dos Reis Magos para Belém, onde se acredita que Jesus nasceu.

Um homem mais jovem, vestido com um sarongue (espécie de saia) e uma camisa do clube de futebol inglês Manchester United, levanta-se do chão. Seu nome é Mohamed Said Awid Arale.

Um garimpeiro na montanha Daallo, Somalilândia
Muitos dos garimpeiros que começaram a chegar em 2017 à montanha Daallo, na Somalilândia, são antigos nômades

“Como você certamente sabe, ‘Puntlândia’ significa ‘terra de aromas deliciosos'”, relembra ele.

“Mil e quinhentos anos antes do nascimento de Jesus, a mais poderosa mulher faraó do Egito, Hatshepsut, fez uma expedição famosa até aqui. Ela ordenou a construção de cinco barcos para a viagem, encheu-os com os três produtos preciosos e navegou de volta para casa”, ele conta.

“O ouro foi usado para adornar o corpo de Hatshepsut, o incenso de olíbano foi queimado nos seus templos e a mirra foi usada para mumificá-la depois que ela morreu”, afirma Arale.

Ouro, incenso e mirra são exportados da região há milhares de anos. Grande parte do olíbano consumido no mundo para a fabricação de incenso vem da região conhecida como Chifre da África.

Mas, atualmente, um dos presentes levados para o menino Jesus – o ouro – está semeando a destruição dos outros dois. E os homens da montanha Daallo fazem parte do problema.

Cenas de uma expedição ao reino de Punt, retratadas em uma parede do Templo de Hatshepsut, no Egito
As famosas árvores da região do Chifre da África são ilustradas nas paredes do Templo de Hatshepsut, no Egito.

Eles lideraram uma corrida do ouro que começou cerca de cinco anos atrás e fez com que fossem arrancadas as plantas de olíbano e as árvores de mirra, algumas com séculos de idade.

“Multidões de garimpeiros invadiram as montanhas”, segundo Hassan Ali Dirie, da organização ambiental Candlelight. “Eles cortam todas as plantas para limpar a área para a mineração. Eles danificam as raízes das árvores enquanto cavam em busca de ouro. Eles bloqueiam cursos d’água importantes com suas garrafas de plástico e outros tipos de lixo.”

“Dia após dia, eles estão causando a lenta morte dessas árvores antigas”, diz. “Primeiro, morreram as árvores de mirra, que são arrancadas pelas raízes quando as escavadeiras limpam o terreno para a mineração de superfície. As árvores de olíbano duram um pouco mais porque crescem sobre as rochas, mas são destruídas quando os garimpeiros cavam mais fundo na terra.”

Perfume de madeira

Subindo um pouco mais pela montanha, encontramos uma aldeia onde as árvores de olíbano são passadas de geração em geração.

Ali, uma mulher está sentada em uma cadeira plástica azul na varanda de casa, rodeada por crianças, suas mães e filhotes de cabras.

“Não tenho ideia do que você está falando”, responde Racwi Mohamed Mahamud, quando pergunto a ela sobre a história dos presentes dos três Reis Magos.

“Tudo o que sei é que minha família é dona destas árvores há centenas de anos. Elas são passadas do trisavô para o bisavô, para o avô, para o pai e para o filho”, ela conta.

Ela pede a um jovem para pegar um pouco de resina de olíbano retirada recentemente da árvore. Ele trouxe um embrulho de pano, colocou-o no chão e abriu. O ar ficou cheio de um delicioso perfume amadeirado.

Nós peneiramos a substância grudenta para separar pedaços de olíbano. Esses pedaços são limpos, secos e classificados para serem vendidos a intermediários que os exportam para todo o mundo. O incenso é queimado nas igrejas, mesquitas e sinagogas. O olíbano também é usado para produzir remédios, óleos essenciais, cosméticos sofisticados e perfumes – incluindo o famoso Chanel N° 5.

Mahamud lança um olhar vago quando pergunto o que ela acha de ver seu olíbano sendo vendido em lojas de departamento sofisticadas, prometendo propriedades milagrosas contra o envelhecimento e em aromas misteriosos e sedutores.

“Parece bobagem para mim”, responde ela. “Nós queimamos olíbano para espantar moscas e mosquitos. Nós o inalamos para curar resfriados e o consumimos para tratar de inflamações. É isso.”

Árvore de olíbano colhida em excesso
Árvore de olíbano que foi colhida em excesso

Os colhedores recebem muito pouco pelo olíbano. Um quilo do produto é vendido por US$ 5 a US$ 9 (cerca de R$ 26 a R$ 48). Já houve escândalos envolvendo intermediários inescrupulosos e a ganância de companhias estrangeiras.

Eles conseguem um pouco mais pela mirra, que vendem atualmente por US$ 10 (cerca de R$ 53) por quilo. Como o olíbano, a mirra é uma resina extraída de pequenas árvores espinhosas. Ela é usada para embalsamar cadáveres e na fabricação de perfumes, incenso e remédios.

Acredita-se que a mirra tenha propriedades antissépticas, analgésicas e anti-inflamatórias. Ela também é usada em cremes dentais, enxaguantes bucais e pomadas para a pele.

Os moradores locais explicam como os garimpeiros chegaram à sua região com pás e picaretas.

“Nós lutamos contra eles”, conta Mahamud, fechando o punho. “Nós dissemos: ‘vocês vieram aqui pelo seu ouro, amarelo e bruto. Nós temos o nosso ouro verde e ninguém pode tirá-lo de nós.”

Os garimpeiros então fugiram e nunca mais voltaram.

Incenso colhido em Daallo Mountain, na Somalilândia
A resina de olíbano é usada em perfumes como o Chanel N° 5. Seus produtores recebem US$ 5 a US$ 9 (R$ 26 a R$ 48) por quilo.

A atmosfera na vila de olíbano era completamente diferente do acampamento dos garimpeiros. Era simples, mas havia um senso de comunidade.

Jovens e anciãos passeavam, conversavam, tomavam chá e se queixavam de como os baixos preços do olíbano dificultaram a sobrevivência, especialmente nestes tempos de inflação alta e forte seca.

Drogas e impostos jihadistas

Levei um tempo para perceber o que havia de tão estranho no acampamento dos garimpeiros. Foi quando percebi que ali não havia mulheres, nem crianças.

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Um camelo na montanha Daallo, Somalilândia
A cordilheira de Golis, na fronteira entre os territórios disputados pela Somalilândia e Puntlândia, é fonte de riquezas há séculos

“Realmente não sabemos o que aconteceu com as nossas famílias”, afirma Salah, o ancião que encontrei sentado sob a árvore. “Nós costumávamos ser nômades, mas perdemos várias estações chuvosas a fio e as secas nos fizeram abandonar nosso modo de vida tradicional.”

Salah explicou como eles chegaram às montanhas em 2017, em busca de ouro.

“Não havia nada aqui quando chegamos. Era só um leito de rio seco. Este foi o primeiro lugar onde o ouro foi encontrado. Aqui, nós construímos uma espécie de aldeia”, ele conta, apontando para os barracos feitos com gravetos.

Perguntei a Salah e às dezenas de outros homens sentados com ele se eles preferiam a vida de minerador à de nômade. Eles balançaram a cabeça negativamente e começaram a gritar com raiva.

“Quando éramos nômades, nós tínhamos dignidade”, afirma ele. “Não dependíamos de ninguém. Nós vivíamos com nossas famílias, nossos camelos, cabras e carneiros. Nada nos faltava.”

“Os camelos carregavam nossos abrigos e panelas. Os animais nos forneciam comida e leite. Nós não podemos comer nem beber o ouro que encontramos. Ele não consegue carregar nossos abrigos e pertences”, afirma Salah.

Um acampamento de mineiros na montanha Daallo, Somalilândia
A região em volta das minas de ouro quase não tem vegetação. Ela é disputada por negociantes de khat e coletores de impostos jihadistas

Os garimpeiros explicam como eles vendem o minério para os contrabandistas que o levam de navio para Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. A mineração não está destruindo só o meio ambiente. Ela está arruinando a vida deles.

“Nós viramos dependentes de drogas”, afirma Arale, o homem com a camisa vermelha do Manchester United.

“Somos reféns dos negociantes de khat”, uma folha narcótica mastigada por muitas pessoas na Somália. “Eles controlam nossas vidas. Gastamos todo o dinheiro com khat e não com nossas famílias, que estão perdidas para nós.”

Enquanto eles falam, uma caminhonete entra na aldeia. Dois homens bem vestidos saem do veículo e os garimpeiros dizem que são vendedores de khat.

“O ouro também arruinou nossas vidas de outras formas”, afirma Salah. “Ele deixou alguns de nós loucos, como o nosso amigo que encontrou US$ 50 mil [cerca de R$ 267 mil] em ouro e perdeu o juízo.”

Dirie, da organização Candlelight, explica como o ouro está destruindo a comunidade local.

“Houve escolas que fecharam porque todos os professores saíram para a corrida do ouro. Os alunos também estão saindo”, ele conta.

Dirie afirma que somalis de outras regiões estão chegando às montanhas, causando lutas mortais entre os clãs.

“Muitos dos garimpeiros estão armados”, afirma ele. “Precisamos sair agora. Não é seguro ficar muito tempo por aqui.”

Os garimpeiros afirmam que o grupo islâmico Al-Shabab e a facção do Estado Islâmico na Somália começaram a cobrar impostos dos garimpeiros.

Enquanto saímos de carro das montanhas pela longa e empoeirada estrada de volta, fico imaginando se as pessoas que compram perfumes, cosméticos e joias caras têm alguma ideia de onde vêm as substâncias usadas para sua produção, do número de mãos pelas quais elas passam e quanta destruição elas causam.

 

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